Já faz algum tempo que alguns liberais têm afirmado que
armamento civil seria uma das medidas mais eficazes para conter a violência
contra a mulher. A lógica é simples: se as mulheres andarem armadas, vão ter
como se defender de possíveis estupradores. Claro, essa tese faz parte de toda
uma visão de mundo pró-armamento civil, então ela perde credibilidade logo de
cara para uma pessoa que já não concorda com a ideia de que o porte de armas
por civis deveria ser amplamente permitido.
O debate armamentista me parece bem interessante, mas é um
tema bem delicado sobre o qual ainda não tenho uma opinião formada, e não
pretendo entrar nessa discussão aqui. Para todos os efeitos, considerem que
concordo com os liberais: armamento civil deveria ser permitido. Mesmo tomando esse ponto de partida, a
ideia de que a liberação do porte de armas ia reduzir drasticamente a violência
contra a mulher está terrivelmente equivocada, na minha opinião. E é isso que
vou tentar explicar neste texto.
Vou tomar como ponto de partida um texto do site liberal Spotniks, em que o autor defende exatamente esse ponto: o acesso a armas seria
uma maneira eficaz de conter a violência contra a mulher. De acordo com o
texto,
“E antes que você pense o contrário – não, dizer isso não é apontar que basta carregar um revólver na bolsa e seus problemas estarão resolvidos. Longe disso. Mas é inegável que mulheres treinadas na posse de uma arma de fogo tendem a obter resultados mais satisfatórios em sua própria defesa em momentos de ataques. E essa está longe de ser uma ideia nova. Na década de 60, a prefeitura de Orlando, nos Estados Unidos, viu uma queda de 90% do número de estupros de mulheres após oferecer treinamento com armas de fogo a elas. A tendência acompanha outras análises com mulheres armadas em todo mundo.
Ao examinar os dados fornecidos entre 1979 e 1987 pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos, o economista Lawrence Southwick descobriu que a probabilidade de ferimentos graves gerados graças a um ataque é 2,5 vezes maior para as mulheres que oferecem nenhuma resistência do que para mulheres que resistem com uma arma. Em contraste, a probabilidade de mulheres serem gravemente feridas era quase 4 vezes maior quando elas resistiam sem uma arma do que quando resistiam com uma arma.”
(As fontes desses dados estão no final do texto.)
Por mais que o texto tenha boas intenções em divulgar um
meio de combater a violência contra a mulher, ele não aborda um assunto
fundamental: a cultura do estupro.
A expressão “cultura do estupro”, à primeira vista, gera uma
espécie de choque. Ela parece sugerir que a sociedade inteira apóia o estupro e
glorifica quem o pratica.
Bom, é óbvio que não. E já deve estar óbvio, a essa altura,
que não é isso que a expressão quer dizer.
Não sou a pessoa mais indicada para explicar o que é cultura
do estupro. Várias blogueiras feministas já fizeram isso muito bem, então vou
deixar links para as explicações delas aqui embaixo – sugiro que vocês leiam.
Mas, como é melhor que eu mesma dê a explicação para continuar o texto, aqui
vai: cultura do estupro é a ideia de que os corpos das mulheres estão, em algum
nível, à disposição de homens. Não quer dizer que todas as mulheres, a todo
momento, correm extremo perigo de serem estupradas por qualquer homem. Não é
isso. Mas é a ideia de que as mulheres não têm liberdade para fazerem o que
quiserem com o próprio corpo, e que cabe aos homens, em parte, decidir o que
elas podem ou não fazer. É realmente como se elas não tivessem propriedade total sobre si mesmas, e,
portanto, outras pessoas podem ter.
A primeira expressão disso é o comportamento superprotetivo
de alguns pais sobre suas filhas – sabe, aquelas piadas engraçadinhas de pais
olhando torto para os namorados das filhas, escolhendo um “bom partido” para
casar com elas, selecionando que tipo de homem é “merecedor” ou não delas.
Depois, os namorados, ou maridos. “Se ela está comigo, está comigo”. “Mulher minha é só minha”. “Mulher
minha não bebe, não fuma, não chega em casa tarde, não fala com outros homens”.
E, claro, até pouco tempo atrás existia a ideia de que o marido tinha “direitos”
sobre a esposa – isto é, direito a fazer sexo com ela sempre que quisesse,
mesmo que ela se recusasse. Isso também é conhecido como estupro marital.
E, se ela não “for” de ninguém – nem do pai, nem do marido –
aí ela é de todos. Qualquer homem tem
liberdade para mexer com ela. Esse “mexer com ela” pode vir nas formas mais
variadas, desde assédio a estupro.
E agora chegamos na parte mais importante, para este texto,
da cultura do estupro: ela está tão espalhada que o abusador pode ser qualquer
um. Pode ser um amigo, um conhecido, um colega, um padrasto, um tio, um
professor, um pai. Estupros geralmente são cometidos por conhecidos da vítima,
e frequentemente são pessoas de confiança delas. Podem ser cometidos na escola,
em festas, com a vítima inconsciente. A maioria das vítimas de estupro, aliás, é
menor de idade.
Tudo isso é um enorme empecilho para a ideia de que armas
conteriam a violência contra a mulher. Em várias situações de estupro, abuso ou
qualquer outra forma de violência, a vítima não teria como portar uma arma.
Bêbada em uma festa? Na cama com o namorado? Numa sala de aula? Adormecida no
sofá de um amigo? Menor de idade e em casa?
Seria irreal esperar que, nessas situações, a permissão para
porte de arma ajudaria a vítima de qualquer forma. Então, pelo menos nessas situações, porte de arma não
conteria estupro.
Claro que é difícil saber qual é a proporção dessas situações frente o total. E se, na maioria das
situações, as mulheres puderem, sim,
usar armas para conter a violência? Por exemplo, segundo o texto do Spotniks, a
taxa de estupro em Illinois caiu 90% depois de as mulheres terem recebido
treinamento em armas. Essa taxa realmente é impressionante. Mas é preciso olhar
com cuidado a fonte. É de um relatório policial de 1978. Nessa época, estupro
marital ainda era permitido por lei em Illinois. Além disso, será que, naquela
época, as mulheres se sentiam suficientemente confiantes para denunciar
estupros cometidos por amigos ou conhecidos? Será que casos de pedofilia foram
computados? E o que falar de estupros cometidos contra mulheres inconscientes?
É bem possível que, na verdade, esses dados apresentados se
refiram ao estupro como ele “classicamente” é apresentado: uma mulher está
andando sozinha na rua e um homem desconhecido pula de um beco. Essas situações
existem, e devem ser combatidas. Mas não são a maioria.
Então, sim, talvez o armamento civil realmente seja eficaz
no combate à violência contra a mulher. Mas essa violência não vai acabar
enquanto não acabarmos com a cultura do estupro. E isso envolve educar os
filhos de forma diferente e promover uma mudança de status quo gigantesca. Pode
levar anos, décadas, séculos até. Mas é a única esperança de acabar com a
violência contra a mulher de uma vez por todas.
Texto do Spotniks e fontes:
Sobre a cultura do estupro: