Um dos livros que mais gostei de ter lido nos últimos tempos
foi “Direita e Esquerda: Razões e significados de uma distinção política”, do Norberto
Bobbio. Apesar de ter adorado a leitura, algumas semanas depois dela comecei a me incomodar com uma das conclusões do texto. Esse post é
sobre as razões desse incômodo. E, para poder falar sobre elas, vou ter que
começar com um breve resumo do livro.
Ele foi escrito na época da campanha eleitoral de 1994, na
Itália. O Muro de Berlim havia acabado de cair e a União Soviética, de se
desfazer. Parecia muito claro que, na Guerra Fria, a direita havia ganhado e a
esquerda, perdido. A direita tornou-se praticamente hegemônica: quase ninguém
mais se dizia de esquerda. Alguns diziam que os termos “direita” e “esquerda” simplesmente
não faziam mais sentido: que haviam se tornado inúteis (principalmente Francis Fukuyama, que pregava o "fim da história"). Foi nesse cenário que
Bobbio, um intelectual de esquerda, decidiu se jogar no debate, a fim de pôr à
prova a noção de que a esquerda havia acabado.
Embora eu queira muito fazer comentários sobre o livro
inteiro, isso tiraria um pouco o foco do texto. Então, vou só falar do critério que o
autor usa para definir “esquerda” (essa, afinal, era minha motivação ao ler o
livro: a busca de um critério objetivo):
Bobbio, no final do livro, coloca sua
conclusão de uma forma poética – diz que a estrela polar da esquerda é a
igualdade. Essa conclusão - que me pareceu razoável imediatamente após a leitura - tem alguns problemas:
1) Precisamos falar sobre a expressão “estrela polar”. A
estrela polar é o guia, aquilo que indica o norte. Considerando a igualdade
como “norte” da esquerda, pode-se dizer que a igualdade é, para os partidários
dessa posição política, uma espécie de “objetivo” ou “fim”?
A relevância dessa pergunta está em que, se a igualdade for
um “fim” para a esquerda, não necessariamente será o seu meio. Isto é: pode-se
tratar pessoas desigualmente, pode-se promover distribuições injustas e criação
de hierarquias arbitrárias, desde que isso leve à “igualdade” no final.
Ao
contrário, tratar os outros igualmente por princípio não necessariamente
levaria a esse “fim”, isto é, essa “utopia” do mundo igualitário. Talvez acabe
por produzir um mundo ainda mais desigual, na verdade. Portanto, é importante
decidir se a esquerda acredita em igualdade como “meio” ou como “fim”. Se
acreditar em ambos – e, conscientes de que eles podem entrar em conflito – a esquerda
provavelmente precisará, em determinadas situações, escolher entre preservar a
igualdade como princípio (“meio”) ou sacrificar sua aplicação tendo em vista a
finalidade de um mundo mais igualitário.
2) É interessante notar que Bobbio definiu esquerda, mas não
direita. Parece que ele simplesmente deixou a semantização de “direita” a cargo
dos leitores. O problema é que essa não é tarefa das mais simples.
Dentro do livro, em meio às inúmeras possíveis
oposições entre esquerda e direita (além de diversas concepções de “centro”),
existem várias formas de definir “direita” tendo como referencial apenas uma
definição de esquerda.
Em primeiro lugar, uma oposição linear entre direita e
esquerda significaria que a direita é, necessariamente, o “oposto” da esquerda.
Ou seja, se a extrema esquerda tem como norte a igualdade, a extrema direita
teria como norte a desigualdade. Mas não precisamos limitar a esquerda e a
direita apenas aos extremos – pontos no finalzinho da reta. Vamos imaginar, então,
um ponto A e um ponto B nessa reta, em que A fique à esquerda de B. Tudo à
esquerda de “A” seria esquerda, tudo à direita de “B” seria direita, e tudo
entre os dois pontos seria centro. Se você não aceita a ideia de centro, não
tem problema: é só imaginar que “A” e “B” estão no mesmo lugar.
O problema com essa ideia é que a imensa maioria das pessoas
que são consideradas (por elas mesmas ou pelos outros) “direitistas” não tem
como norte a ideia de “desigualdade”. Ninguém luta ativamente pela desigualdade,
ninguém levanta bandeiras pela desigualdade. É uma causa que quase ninguém
consideraria justa. A maioria dos direitistas, de fato, não se diz a favor da desigualdade. Se diz a favor de outras
coisas, como “ordem”, “liberdade”, “prosperidade”, “bem-estar”, etc.
Ora, se o interesse principal da direita não for a desigualdade, fica difícil
falar em direita e esquerda como opostos. As próprias palavras passam essa
ideia. Seria mais simples, então, falar de “esquerda” e “não-esquerda”. Não
seria exatamente uma reta, seria outra figura geométrica. A díade
“direita-esquerda”, então, perderia muito de seu sentido. “Direita” e “esquerda”
deixaria de ser uma oposição e passaria a ser, nas palavras de Bobbio, uma
simples “díade”. Esquerdistas e direitistas lutariam por coisas diferentes, é
verdade, mas não por opostos, não necessariamente um contra o outro. Só haverá oposição entre esquerda e direita nas
ocasiões em que o valor defendido por um lado se chocar com o valor defendido
pelo outro – se a igualdade se chocar com a liberdade, por exemplo.
A alternativa a isso é um pouco mais sombria e um pouco mais
intolerante. Talvez, o que o Bobbio quisesse (e a imensa maioria da esquerda
queira) dizer é que a direita, na verdade, luta SIM pela desigualdade, mas esconde
isso atrás de outras bandeiras (como liberdade ou ordem). Talvez o Bobbio
quisesse obliquamente dizer que o objetivo principal (e não-declarado) da
direita é criar ou manter uma sociedade desigual, mantida por meritocracia,
privilégios, hierarquias, castas, enfim.
Se a opinião pública adotar esse entendimento, quase ninguém
vai continuar a se declarar “de direita” – ou melhor, a qualificação “de
direita” passaria a ser heterodeclarada. Direitista passará a ser aquele que os
outros dizem que é direitista. Então, sobrariam três gatos pingados se
declarando de direita, e outros milhares seriam “ditos” direitistas pelos
outros – como um xingamento, claro. Uma ofensa.
Certamente, eu prefiro a primeira alternativa. Acredito que a
direita pode se manter uma posição respeitável, continuar a professar valores
como a liberdade, a realização humana ou o bem-estar e se manter uma ideologia
da qual ninguém precise se envergonhar. Certamente não poderia continuar a ser
o “oposto” da esquerda. Talvez os termos “esquerda” e “direita” passem a
qualificar apenas grupos diferentes, não opostos, mas certamente não
compatíveis.
Bom, é isso. Não sei se me expressei bem aqui. De qualquer forma, recomendo muito que todos leiam o livro. É curto
(só 150 páginas), fácil e muito claro. Aqui o link: http://www.libertarianismo.org/livros/nbdee.pdf